Bairro Santa Tereza, um dos principais redutos dos amantes do bom papo regado a uma cerveja gelada, é um dos mais afetados pela medida
Esperança para Belo Horizonte manter o título de capital nacional dos botecos. A prefeitura admite discutir e até rever a legislação que tira mesas e cadeiras de passeios de bares e restaurantes em vias residenciais. A polêmica foi lançada em reportagem publicada quinta-feira no Estado de Minas, que mostrou os impactos na vida boêmia da cidade causados pela recente alteração na Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo, regulamentada em agosto.
Diante da ameaça de a norma pôr fim à cerveja gelada e ao tira-gosto servidos ao ar livre em bairros tradicionais, o vice-prefeito Roberto Carvalho (PT) foi categórico: “A lei é confusa. Belo Horizonte, talvez, seja a cidade no mundo com mais botecos. É o espaço de encontro do mineiro e aplicação da lei deve ser feita com bom senso. Estamos nos preparando para receber a Copa do Mundo de 2014 e os bares e restaurantes serão nossa vitrine. Se for o caso, vamos fazer outra lei”.
Os primeiros a sentir na pele as consequências na nova regra foram comerciantes do principal reduto boêmio da capital, o Bairro Santa Tereza, na Região Leste. Eles tiveram, na semana passada, cerca de 140 jogos de mesas e cadeiras recolhidos pela fiscalização municipal. Depois do susto, os donos dos estabelecimentos terão a chance de começar a respirar aliviados na terça-feira, quando haverá reunião com a Secretaria de Administração Regional Leste. Inicialmente, o gerente de Fiscalização Urbanística e Ambiental da Regional, Augusto Carlos Papini, diz que todas as ruas do bairro se enquadrariam como residenciais, afastando a possibilidade de haver mobiliário nas calçadas.
Mas parece que a secretaria está mudando seus conceitos e vai avaliar a situação de cada rua separadamente, pois entendeu que há clara vocação comercial de algumas vias. Em vez de residenciais, elas deverão ser consideradas vias mistas. O líder de governo na Câmara, vereador Paulo Lamac (PT), que acompanhou a tramitação do texto e agora tenta apagar o incêndio causado pela aplicação da lei, afirma que não é intenção da prefeitura acabar com a principal marca do bairro. “Não queremos romper com uma tradição histórica de Santa Tereza.”
Comerciantes do bairro cogitam até de elaborar proposta para mudar a lei. O tema será discutido sábado, durante a tradicional feijoada organizada em setembro no Bar Temático. “Seria um projeto de cunho popular, com a flexibilização do que está vigente”, diz Marilton Borges, do Marilton’s Bar. Os moradores defendem o bom senso. “Desde que haja acessibilidade, não há problema haver mesas e cadeiras nos passeios. O que defendemos é que o comerciante não feche toda a calçada e o pedestre fique impedido de passar. Há um barulho ao longo da noite que incomoda, mas não chega a ser algo catastrófico”, diz o presidente da Associação Comunitária do Bairro de Santa Tereza, José Ronaldo da Cruz.
Falta clareza
Para além dos limites do Santa Tereza, a própria prefeitura e sua base de apoio confessam que a polêmica sinaliza falta de clareza na interpretação da regra que determina que em vias residenciais possa haver bares, restaurantes e similares, desde que a área se limite a 100 metros quadrados e não sejam usadas mesas e cadeiras nos passeios. “A lei está sendo interpretada de forma extremamente rígida”, afirma Roberto Carvalho, que se põe à disposição para o debate. Já Lamac defende que o imbróglio é um alerta:“Essa situação deixa claro que há diferentes formas de aplicação da lei, pois se trata de um tema complexo”.
O líder de governo considera a possibilidade de fazer uma emenda ou projeto para esclarecer pontos considerados confusos no texto. Também lembra que, em recente revisão de outra importante lei da cidade, o Código de Posturas, a posição do município foi de flexibilização em relação a mesas e cadeiras nas calçadas. Pelo código, podem receber o mobiliário calçadas de no mínimo três metros de largura, desde que mantida faixa de um metro para circulação de pedestres. Em condições especiais, passeios a partir de dois metros de largura também podem ter mesas e cadeiras.
Lei ameaça deixar BH sem o título de capital dos botecos
Flávia Ayer - Estado de Minas
Publicação: 23/09/2010 06:31 Atualização: 23/09/2010 09:41
O motivo é que todas as ruas de Santa Tereza foram consideradas residenciais pela administração. Além de pegar comerciantes de surpresa, a norma estremeceu uma tradição que nasceu com o bairro e levou proprietários a se organizarem para mudar a situação. O alvo da ação foram estabelecimentos em processo de renovação do alvará e da licença para mesas e cadeiras. Mas, à medida que os documentos das outras casas vencerem, elas também deverão se adaptar à nova regra, o que deve ocorrer até meados de 2011. E é bom ressaltar que a norma não vale apenas para o Santa Tereza, mas para toda a cidade. A nova lei classifica as ruas de BH como residencial (VR), mista (VM) e não residencial (VNR). Nas VRs é possível haver bares, restaurantes e similares com área de até 100 metros quadrados, desde que passeio e o afastamento frontal não sejam usados.
Significa dizer que os assentos mais cobiçados das noites e fins de semana da capital, sobretudo durante o tradicional festival Comida di Buteco, serão extintos, assim que a atual licença dos estabelecimentos vencer e eles tenham que se adequar à nova lei. “A calçada é um traço diferencial em Belo Horizonte. Vale a máxima de que BH não tem mar, mas tem bar. Isso tende a atrapalhar o setor, principalmente bares menores em bairros”, afirma o presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) em Minas, Paulo Nonaka. O principal argumento da associação para alterar esse quadro será a contradição entre leis muncipais.
Isso porque o Código de Posturas, que regula o uso do espaço público, dá outros parâmetros para o quesito mesas e cadeiras. Em recente revisão, a lei de posturas definiu que podem receber esse tipo de mobiliário bares, restaurantes e similares com passeios de largura a partir de três metros. A condição é deixar faixa livre de no mínimo um metro para a circulação de pedestres. Em situações especiais, a lei autoriza mesas e cadeiras em calçadas entre dois e três metros, desde que mantida faixa livre de um metro para passagem de pedestres. “Uma lei contradiz a outra. Se o bar já tiver alvará de localização de mesa e cadeira, tem como questionar isso na Justiça. Vamos entrar com liminar para trombar com essa decisão”, afirma.
Dificuldade
O risco de perder mesas e cadeiras das calçadas bate à porta do Bar do Antônio, mais conhecido como Pé de Cana, no Bairro Sion, na Região Centro-Sul, desde 1964 no endereço, e assusta os donos. “A tradição da calçada em BH é enorme e a maioria das pessoas gosta de sentar do lado de fora do bar. Os maiores prejudicados são os clientes”, diz um dos sócios, Márcio Roberto Bomtempo, ressaltando que metade dos funcionários teria que ser demitida. Segundo ele, houve grande dificuldade para renovar a licença de permissão de mesas e cadeiras. “Nossa licença vence em abril e, se tivermos que tirar as mesas, vamos perder mais de R$ 10 mil só em investimento no passeio que a própria prefeitura pediu”, diz.
Segundo a consultora técnica especializada da Secretaria Municipal de Políticas Urbanas Maria Fernandes Caldas, a decisão foi tomada na 3ª Conferência Municipal de Políticas Urbanas, em 2009, que discutiu as mudanças na legislação. “A intenção é conciliar os usos. As pessoas gostam de bares, mas precisam ver que, se estiverem numa área residencial, é importante que os moradores consigam dormir. E uma das condições é não ter mesa e cadeira na calçada”, afirma. Ela acredita que a medida não trará grande incômodo aos amantes dos botecos. “A Lei de Uso e Ocupação do Solo foi flexibilizada em relação aos bares. Antes, em vias residenciais, eram admitidos estabelecimentos de até 30 metros quadrados apenas, e não de 100. Mas a mudança traz a condição de as mesas e cadeiras ficarem dentro dos bares.”
Para quem não dorme com o barulho da conversa de boteco, a medida é comemorada. “Todo mundo gosta de bar, desde que não seja perto do seu prédio. Acho que não é preciso dar um jeito para diminuir a poluição sonora. Somos a favor da retirada das mesas e cadeiras das calçadas. Em Lourdes, os bares que não usam os passeio são os únicos que não recebem reclamação”, afirma o presidente da Associação dos Moradores do Bairro de Lourdes (Amalou). A entidade projetou, inclusive, um toldo antibarulho, que está sendo avaliado por equipe técnica da prefeitura e será testado em três estabelecimentos.
A capital dos botecos corre o risco de perder esse título. A ameaça vem de mudanças na legislação municipal que abalam um dos maiores mandamentos da boemia: a cerveja gelada e o tira-gosto do bom servidos no passeio do botequim. A Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo (7.166/96), alterada há dois meses, decreta o fim das mesas e cadeiras em calçadas de bares e restaurantes em vias residenciais de Belo Horizonte. Esse tipo de via representa a maioria das ruas da cidade e é, geralmente, o endereço dos disputados barzinhos de esquina. O impacto da medida já começou a ser sentido no principal reduto boêmio da cidade, o Bairro de Santa Tereza, na Região Leste, onde cerca de 10% dos estabelecimentos tiveram o mobiliário recolhido pela prefeitura e foram impedidos de atender clientes do lado de fora. |